Como evitar erros previsíveis? Diante da atual crise estrutural dos modelos comerciais das grandes varejistas do livro no país, temos a oportunidade de debater novas perspectivas e resolver algo que já não nos parecia estar indo bem. Por isso, criei essa série de artigos em uma tentativa sincera de contribuir com soluções para o nosso mercado. Não é e não será meu intuito fazer juízo de valor sobre o negócio particular de terceiros, mas espero conseguir ajudar em algo.

A confiança sempre foi a base da relação entre autores, editoras e livreiros. Se observarmos o cotidiano da cadeia produtiva do livro, veremos que ela está presente na maior parte das nossas microrrelações. Esse arquétipo é dominante em mercados mais concentrados e com “pouco” volume transacional.

O que fazer quando essa relação de confiança é quebrada inúmeras vezes?

O cenário atual, que classificamos como crise, é definido pela perda de credibilidade e confiança por não cumprimento de acordos previamente estabelecidos com um grupo de relacionamento. As consequências reais deste evento são amplas e desgastantes para todos os envolvidos.

Diante dos fatos amplamente discutidos e debatidos neste canal e fora dele, e pela notória previsibilidade dos fatos, é lógico e necessário que criemos um sistema mais inteligente e que garanta mais transparência transacional, sem a codependência dos costumes e da tradição como base.

Percebam que, ao explanar sobre o tema, proponho uma solução global para a crise de confiança. Todos os dias editores me perguntam qual o melhor caminho a seguir: se devem continuar a fornecer produtos para os inadimplentes, se devem investir nos marketplaces e se acho uma boa ideia abrir canais próprios de e-commerce, entre outros modelos. Em muitos casos, a adoção de um só modelo operacional / comercial tem efeito paliativo (e placebo). Construir uma plataforma transacional de transparência para o mercado significa conferir liberdade para que os agentes adotem qualquer um dos modelos atuais e os que virão no futuro.

Tá, mas o que é esse tal de blockchain?

Antes de explanar sobre a aplicação prática, vamos entender um pouco sobre sua origem.

Para explicar o que é blockchain, preciso mergulhar um pouco em nossa história recente e o artigo de Satoshi Nakamoto, A Peer-to-Peer Electronic Cash System, de outubro de 2008. (Curiosidade: A identidade do Satoshi Nakamoto é um mistério. Ninguém sabe quem é de fato é Satoshi. Muitos atribuem o nome a um grupo de usuários. Alguns indivíduos já declararam ser Satoshi, mas, até hoje, nada foi conclusivo).

Ele propõe a criação de uma solução financeira de ponto-a-ponto em que intermediários financeiros ou qualquer tipo de mediador seriam dispensáveis. A ideia conta com uma elaborada construção criptográfica de registro e validação descentralizada, o que substitui a legitimação transacional por instituições centralizadoras, como bancos, o governo ou órgãos de controle. Você se lembra de como é baixar um arquivo em uma ferramenta de Torrent? O conceito é semelhante no aspecto de descentralização. Não existe um servidor central a partir do qual o conteúdo é baixado, ele está em diversas máquinas de usuários pelo mundo, e todos estão interligados por uma rede de compartilhamento.

Ok, poderia deixar mais claro?

Em termos práticos: em uma relação de venda, um dos meios de pagamento é por cartão de crédito, correto? Esta opção envolve destinar uma margem do lucro à instituição financeira que está mediando a transação, tornando-a mais segura. O sistema de validação de Nakamoto registra criptograficamente e legitima as transações usando força computacional. Essa estrutura de registro e validação é o blockchain.

Blockchain e bitcoin têm alguma relação?

Sim, são filhos de uma mesma gestação. O blockchain criado por Nakamoto registra e valida as transações financeiras de criptomoedas de bitcoin.

Como funciona e como ele registra e valida informações?

Estruturas de blockchain podem ter algumas variações para comportar tipos diferentes de dados. Os de bitcoins, por exemplo, registram e autenticam transações financeiras. Já do Ethereum comporta dados diversos.

A ideia é muito simples: computadores interligados em rede são responsáveis pelo registro das operações, organizando-as em blocos de dados. Para cada nova operação é gerado um bloco de dados com sua respectiva identidade, o que costumeiramente chamamos de HASH. Então, se você compra um carro com dois bitcoins, o blockchain vai registrar a operação, debitar da sua carteira digital e os outros computardes na rede vão verificar a veracidade dessa transação. Como cada operação gera um HASH (uma identidade única), não é possível utilizar esses mesmos Bitcoins novamente. Os dados da transação são registrados e é impossível modificá-los ou alterá-los.

Para quem tiver curiosidade técnica e quiser se aprofundar no tema, recomendo a página de Anders Brownworth, que permite navegar pelo sistema entendendo as etapas em uma interface gráfica, e também tem vídeos bem didáticos do próprio Anders.

Blockchain e a realidade palpável

Se você já está imaginando um mercado tecnocrata operando as relações contratuais dos livros, corte dos intermediários transacionais e um sonho libertário em forma de criptomoeda, peço ainda um pouco de calma.

A maior contribuição de Satoshi Nakamoto e que nos é factível implementar e adaptar ao nosso contexto é sua estrutura de transparência ampla. Seus usos evoluíram e ganharam outras formas de implementação. A tecnologia pode ser usada e está disponível para quem queira implementá-la em grandes e conhecidas plataformas de tecnologia.

“Os gastos mundiais estimados em soluções de blockchain chegarão a US$ 2,1 bilhões em 2018, número mais do que o dobro maior que os US$ 945 milhões registrado em 2017, segundo dados da IDC.” (Fonte: https://computerworld.com.br)

O motivo para o crescimento gigantesco dessa tecnologia é a necessidade de mais transparência em cadeias produtivas e de atendimento.

Mas você pode explicar como isso se aplica ao livro? Como criar uma solução para o nosso contexto?

Usaremos como exemplo o conjunto relacional mais elementar da nossa cadeia: autor, editora e livraria.

Na atual relação, o autor autoriza a exploração comercial da sua propriedade intelectual pela editora, mediante acordo monetário. A editora, por sua vez, comercializa a obra para pagar seu investimento de produção e distribuição, por meio de varejistas que compram e consignam tais obras para, então, oferecê-las ao consumidor final.

Todo o controle monetário é realizado por contratos e acordos de confiança. Em caso de inadimplência, após protesto, os órgãos responsáveis ou advogados recorrem a favor da parte que se sentiu ou foi lesada no processo. Esta parte precisa aguardar pacientemente até a resolução pacífica ou não do caso. E tanto quem deve quanto quem quer receber gasta uma quantia considerável tentando resolver a situação.

Autores que não recebem seus direitos autorais, editoras que não recebem os acertos e livrarias sem exemplares para vender. Essa é a relação de causa e efeito se algum agente elementar da nossa cadeia não cumpre com sua parte do acordo.

Agora, vamos mostrar como ele nos ajudaria a resolver a questão: precisamos de um sistema de contrato inteligente entre as partes, e a partir de um blockchain em consórcio (modelo controlado por uma empresa ou entidade que pode tornar os dados e transações públicos ou restritos aos interessados) autores, editoras e livrarias conseguem visualizar, em tempo real, quanto cada parte ganhará no processo a partir do registro de venda dos exemplares vendidos no caixa. Sim, um sistema programável, estatístico e em que não é possível ocultar resultados. Acessível a todos os interessados e transparente para toda a cadeia produtiva do livro, que passa a enxergar a saúde do mercado em um bloco sistêmico e previsível, atraindo mais confiança e investidores para o setor. Parece interessante? Sim, de fato é interessante – e realizável.

Isso parece muito distante e complexo de realizar. Ninguém aceitaria… Alguém já fez isso ou algo parecido?

A resposta é sim. São diversas iniciativas nesse sentido por todo o mundo, e elas só crescem. Bancos, empresas de tecnologia, instituições governamentais (trarei sempre uma iniciativa em meus artigos). O uso é amplo e diversificado. Mas vejamos o exemplo da Povenance.

A Povenance foi criada em 2014 por Jessi Baker. A empresa surgiu com o propósito de fornecer mais informações e consciência sobre os produtos que compramos.

Não é incomum encontramos grande marcas que em algum momento da sua cadeia produtiva, mesmo que indiretamente, se envolvem em escândalos por maus tratos aos animais, trabalho escravo, excesso residual de alguma subsistência imprópria para o consumo humano. A Povenance ajuda a evitar e levar informações relevantes aos consumidores e produtores.

O protocolo de segurança que Povenance utiliza é o Ethereum, um sistema de blockchain semelhante ao do bitcoin (o Ethereum também possui uma moeda própria, o Ether. Debateremos um pouco mais sobre essas variações em artigos futuros), que permite a inclusão de dados variados e tem sido muito utilizado para criar contratos inteligentes (Smart contrats). O que a empresa faz (a grosso modo), é mapear a cadeia do processo e produção de produto, classificá-las de acordo com as normas de qualidade e fornecer essas informações aos consumidores. Todas essas informações são registradas e validadas pelo blockchain e não permitem alterações. Se algo estiver errado no processo, essa informação estará acessível.

Se quiserem conhecer um pouco mais sobre a empresa, deixo o vídeo da fundadora Jessi Baker falando um pouco sobre a Provenance. (Em inglês)

Agradeço a quem leu até aqui. Esse texto é apenas uma introdução de uma série que irei escrever para o nosso blog e o PublishNews todos os meses. Blockchain é um assunto fascinante e de uma potencialidade enorme. Não tenho dúvidas que essa tecnologia estará presente em nossas vidas como a internet se faz presente em dias atuais. Temos muita coisa para debater, conversar e aprendermos juntos.

Muito obrigado e nos vemos logo, logo.